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A Casa que Chora [+16]

Contagem de palavras: 2460


Nossa casa chorava à noite.

Cheguei a pensar que talvez ela se sentisse sozinha, já que a vizinhança mais próxima ficava a três quilômetros dali, e depois quando cresci um pouco pensei que fosse assombrada.

Era uma casa grande, em maioria de madeira, construída pelo meu tataravô em 1876 com ajuda de seus irmãos. Foi considerado um grande feito por ele, o resultado palpável de seus anos como banqueiro e de suas intenções em seguir com uma fazenda. Abrigou todas as gerações futuras com seus sete quartos recheados de camas e segredos.

Na época, toda a terra pelo primeiro acre era nossa, onde plantávamos milho, mas isso mudou quando meu avô perdeu boa parte da terra em um jogo de azar, e agora só tínhamos 1⁄4 do acre. Paramos de plantar milho, e agora tínhamos um grande celeiro cheio de vacas leiteiras, que forneciam leite a nós e a diversas famílias pela pequena cidade. Frescos e nutritivos, muitos deixaram de comprar de mercados para comprar de nós, e, eventualmente, até pessoas de fora da cidade vinham experimentar.

A Fazenda de Leite dos Silva era famosa: tínhamos o leite mais saboroso, da melhor qualidade e tudo de forma natural. Quem teve a ideia foi minha avó, Romilda, que quase se divorciou do vovô peixe quando ele perdeu as terras. Mas só deslanchou mesmo por causa do meu pai, que trabalhava sempre muito duro todos os dias, dando o melhor tratamento para nossas vacas. "Leite bom se faz com carinho", é o que ele sempre dizia, e tratava o gado melhor do que tratava minha mãe.

Eu não tinha do que reclamar. Gostava da fazenda, das vacas, do silêncio e paz de morar afastado de qualquer cidade grande, e gostava de pescar com o vovô, que não tinha o apelido de peixe à toa. Ele sentia muita culpa, mas nunca perdia o senso de humor, e me ensinou a cuidar do barco, dizendo sempre para eu seguir o caminho da pesca e ir embora da casa, mas não era para mim. Eu gostava dali.

O único problema é que não conseguia dormir bem. O choro era insuportável, as súplicas de terror que vinham da madeira pareciam me amaldiçoar.

- Tá ouvindo isso? - perguntei ao meu primo Eduardo. Ele sempre tinha sido meio perturbado, só arranjava briga por tudo, mas até que a gente se dava bem. Ele olhou para mim com seus olhos marejados e grandes, cintilando no escuro, e não respondeu.

Talvez ele fosse assim porque não tinha mãe. Quer dizer, tinha, mas era uma história complicada. Quando minha tia Catarina tinha 24 anos, ela engravidou, e simplesmente sumiu porque não sabia quem era o pai e vó Romilda quis matar ela. A gente nunca mais viu ela, mas uns sete meses depois, o Eduardo apareceu na porta da casa, numa cestinha, com um bilhete de Catarina dizendo para cuidar dele porque ela não tinha dinheiro.

Vó Romilda não gostou, mas não ia deixar o bebê morrer. Isso foi mais ou menos em 1962, dois anos depois que eu nasci.

E foi com uns seis anos de idade que comecei a perceber que a casa chorava. Porquê ela só chorava a noite, eu não sabia. Mas ela praticamente mugia de uma tristeza palpável, quase enlouquecedora, então com mais ou menos nove anos de idade, farto de minhas teorias, fui questionar meu pai.

- São as vacas, meu filho. Ficam muito tristes de noite porque não estamos lá com elas.

Fazia sentido. É por isso que se parecia tanto com um mugido. O celeiro ficava relativamente perto da casa, então fazia sentido que eu as ouvisse tão alto. Aceitei a resposta, e passei a tratar nossas vaquinhas ainda melhor, assim elas não ficariam tão tristes à noite. Não adiantou de nada, entretanto, mas só de saber que não era um fantasma, já me ajudava a dormir melhor. Hoje em dia, queria que tivesse sido um.

Expliquei para Eduardo, e ele também se sentiu mais aliviado, mas fizemos um combinado de ir dormir no celeiro, só para ver se as vacas ficavam mais calminhas tendo alguma companhia.

E assim fizemos. Em uma das noites mais quentes de janeiro, todos foram dormir por volta das dez da noite. Não iríamos nem tentar pedir aos mais velhos para dormir no celeiro, pois eles obviamente não deixariam, então era um plano secreto. Pegamos lampiões, cobertores para cobrir o chão e nossos travesseiros e passamos escondidos pelo corredor do segundo andar, descendo as escadas nas pontas dos pés.

Demos a volta no casarão, destemidos, e finalmente chegamos no celeiro. A vista que já era linda de dia, aquelas longas cadeias de morros esverdeados cortando o horizonte, ficava ainda mais linda tarde da noite. A infinidade de estrelas e a lua cheia como uma rodela de queijo enfeitavam a escuridão assombrosa daquele campo, que parecia bem mais intimidador agora. A luz amanteigada de nossos lampiões iluminou o celeiro grande quando Eduardo empurrou a porta pesada, e revelou nossas vacas dormindo, pacíficas.

Colocamos os cobertores em cima da grama seca, e nos deitamos, depois de cumprimentar as vacas uma por uma. Avisamos de que estávamos ali para fazer companhia.

Para uma criança de nove anos, onze da noite era como um horário proibido, e nós dois já estávamos com os olhos pesados quando enfim nos deitamos em nossas camas improvisadas extremamente desconfortáveis. Estávamos com um pouco de medo, também, então ficamos de mãos dadas olhando o casal de pássaros que tinha se estabelecido em uma das madeiras do teto do celeiro até que pegássemos no sono. Mas foi então que eu cheguei a primeira conclusão assustadora: as vacas estavam tranquilas, sonolentas e não faziam sequer um pio.

E depois de meu coração se acalmar pelo ato de coragem de sair de casa, enfim pude ouvir os mesmos gritos e choros, dessa vez ao longe. Vindo da casa.

- Eduardo - chamei, mas ele já tinha dormido. Engoli em seco, demorando a cair no sono, e mal sabia eu que aquela seria a minha única noite de sono decente em muito tempo.

Levamos bronca de todos os adultos, mas em especial do meu pai, que ficou furioso quando eu contei à ele que não eram as vacas que choravam. De repente a narrativa dele mudou, e ele falou que devia ser o vento uivando pela madeira da casa. Não, aqueles gritos de desespero não podiam vir do vento.

Fomos proibidos de sair de casa e de ir ao celeiro por um mês, e em todos os dias, eu não dormi mais. Fechava os olhos por alguns minutos assim que ficava um pouco mais silencioso, e acordava de novo em um pulo quando vinha mais um mugido doído da casa. Chorava de tanto sono que sentia, e passei a dormir de dia. Mamãe reparou como eu estava ficando doente, e ela e papai tiveram uma discussão longa um dia.

No fim, ela foi convencida por ele, porque estavam ganhando muito dinheiro com as vendas do leite, e que eu iria melhorar. Eu perguntei à ela se ela não escutava a casa chorar:

- Quando?

- À noite.

- O que faz acordado à noite? Não escuto porque estou dormindo.

- Mas é o choro que me acorda.

Me foram necessários meses de insistência para fazê-la ficar acordada comigo, para que ela pudesse ouvir também. Mas ela nunca quis.

Em um dia em que eu deveria ter saído para lavar a entrada, já com onze anos, escutei uma conversa de papai com vovô peixe.

- Você está dando a ele? - papai perguntou, em tom acusatório.

- O que?

- Sabe o quê. Por que ele é o único que fica acordado?

- Não vou drogar meu neto. Só diga que é um fantasma, invente alguma coisa.

Tive que parar de ouvir porque vó Romilda apareceu para ver meu desempenho, e desse dia em diante, quem fazia meu leite quente antes de dormir era papai, e não mais o vovô.

E eu dormia como um anjo. Eu não liguei uma coisa com a outra na época, não tinha entendido que tinha algo no meu leite, mas felizmente, meu avô já tinha tido sua última gota.

No meio da noite, em um dia fatídico, acordei com ele na beirada da cama, os olhos lampejando em dúvida e desespero, enquanto me balançava para que eu acordasse.

- Eu também escuto.

Eu estava grogue, mas sabia do que ele estava falando. O medo que ele tinha na face era contagioso. Esfreguei meus olhos em uma tentativa de afastar o sono, e tremi quando o som do choro me atingiu como uma flecha.

- Contou ao papai?

- Ele não está aqui. - seu lábio tremia, então ele pegou minha mão e a apertou. Sua mão estava gelada, e me puxou para fora da cama com delicadeza. - Escute. Quero que acorde Eduardo e vá para a caminhonete, está bem? Não saia de lá.

- O que está acontecendo?

- Vá para o carro.

Simplesmente fiz o que ele disse. Tive que balançar Eduardo com força para que ele abrisse os olhos, então contei à ele o que vovô havia me ordenado e saímos disparados pela porta dos fundos, porque a caminhonete sempre ficava estacionada por lá. Eu gostaria de não ter tomado essa decisão.

Assim que viramos pela porta, vimos que o alçapão para o porão estava escancarado. Eu nunca havia entrado lá, porque vovô dizia que era onde eles guardavam materiais para conserto, e que eu podia me machucar com tanta serra e faca afiada. Eu e Eduardo também morríamos de medo de lá, além de ter ratos e baratas de acordo com todos da casa, então a curiosidade nunca falou mais alto. Boa parte das vezes, nem lembravam que tínhamos um porão. Mas mais do que aberto, de dentro dele vinha uma luz alaranjada.

Olhando para a esquerda, para o lado que ia para a frente da casa, estava a caminhonete, quase reluzindo e nos chamando - era para onde deveríamos ter ido naquela maldita noite, só que agora a curiosidade morta tinha sido reacendida como pólvora. Eduardo e eu trocamos um olhar, então começamos a caminhar hesitantes para o lado errado.

Nossos pés desnudos eram silenciosos na grama, nós quase nos desequilibrávamos de tanto tentar andar na ponta dos pés, e tudo estava especialmente sombrio porque era uma noite sem lua. Em memória, só posso me lembrar do contraste quente naquele quintal frio, e dos gemidos de dor que tornaram a soar.

Eduardo não aguentou e saiu correndo para o carro, e talvez eu devesse ter feito a mesma coisa, mas continuei andando, inclinando meu corpo para ver dentro do porão, mas quando coloquei o rosto para dentro, só se via uma escadaria. Senti uma pontada de desespero quando percebi que teria que ir mais longe ainda para saciar a minha vontade de enfim saber o que estava fazendo a casa chorar.

Minha mente começou a me pregar peças enquanto eu descia os degraus de cimento, imaginando todo tipo de monstro horrendo que teria ali em baixo, mas ainda assim qualquer monstro teria sido melhor do que a cena mais traumatizante de toda a minha vida.

Assim que cheguei no final da escada para o inferno, todo o meu corpo entrou em choque imediato. Primeiro, eu não entendi o que estava acontecendo, eu só vi meu avô desesperado tentando desacorrentar uma de dúzias de mulheres acorrentadas às paredes, cobertas de uma camada de suor e outros fluidos corporais espessa.

Papai estava desacordado, com um ferimento enorme na cabeça. Meu olhar ia de um lado para outro, o lugar todo cheirava a sangue, urina, fezes, cheirava à podridão e, pior... cheirava a leite.

Todas aquelas mulheres que eu não conhecia, nuas, seus cabelos desgrenhados e suas expressões em um vinco de desespero permanente, todas elas tinham esses tubos conectados aos seus seios, fazendo um barulho insuportável de sucção.

Todo esses tubos iam para outra máquina, e outra... eu não conseguia entender. Lágrimas escorriam desvairadas pelas minhas bochechas quando vi tia Catarina no meio daquelas vítimas. Quase irreconhecível, mas com uma enorme barriga de gravidez, assim como muitas outras. Seus joelhos tinham ralados profundos, sua vagina sangrava violentamente e o sangue vermelho vivo escorria para o chão cheio de manchas.

Vovô só me viu ali depois de um tempo longo demais. Não pude ler sua expressão, tudo estava borrado, existia uma estranha sensação de vazio dentro do meu peito, e ele não falava nada de útil. Me arrastou e me colocou dentro do carro, mas os flashes das imagens continuavam.

Quando enfim entendi que aquele era o leite que estava bebendo todo aquele tempo, vomitei tudo para fora da janela. A última emoção que senti, o último sentimento que me lembro de ter sentido antes de entrar em um estado quase catatônico de trauma pelos próximos dez anos, foi desgosto. Desgosto por tudo, por leite, por vacas, por fazendas, pela vida.

Meu vô sofria ameaças, a única coisa que ele podia ter feito foi ter matado meu pai, minha mãe, e sua esposa, a vó Romilda, e nos tirar de lá. Ele contou tudo à polícia. E por muito, muito tempo, eu não tive coragem de ler as notícias que faziam sobre esse caso.

Todas as noites seguintes da minha vida, eu escutei minha casa chorar. Verdadeiros fantasmas das memórias que me assombrariam para sempre, ecoando dentro do meu cérebro sempre que eu me deitava em qualquer cama, em qualquer lugar. Os mugidos incessantes e desesperados, os gritos por socorro abafados com fita na frente da boca daquelas pobres mulheres que mesmo que tivessem sobrevivido, tinham morrido naquele porão.

Estupradas para gerarem leite, e ordenhadas como bichos por anos. Anos a fio. Eu até mesmo cheguei a pensar que tudo aquilo tinha sido culpa minha. Se minha mãe não tivesse engravidado de mim, meu pai não teria descoberto seu fetiche por leite materno. Anos de terapia quase não bastaram para tirar essa ideia da minha cabeça, para entender que ele teria tido essa ideia doente de qualquer jeito.

Minha mãe concordou. Minha avó concordou. Tudo para recuperar dinheiro, o dinheiro que tinham perdido por causa de vovô peixe, naquele maldito jogo de azar. Nunca mais consegui olhar para ninguém da mesma maneira. Nunca mais consegui me olhar nu diante do espelho. Nunca mais consegui consumir nenhum produto com leite ou vindo de nenhum animal. A dor que eu sentia no estômago sempre que via alguém bebendo leite era capaz de me dar úlcera por dias.

Vovô cometeu suicídio aos 80 anos, e eu não fui a seu funeral. Eu também tinha morrido há muito tempo.

Hoje eu tenho quase a idade que ele tinha no dia em que ele resolveu salvar aquelas mulheres, no dia em que eu perdi minha alma completamente.

Eu fecho os olhos para dormir, mas meu cérebro ainda chora.

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