Contagem de palavras: 1275
Chuva.
O céu reverberava e trovejava acima da cidade movimentada, e os sons dos carros e das pessoas ressoava de volta. Um diálogo inútil, sem sentido, sem objetivo, que não chegava a lugar algum.
Nenhuma das duas partes se dava atenção, porque nenhuma delas tinha tempo para isso. Preocupadas demais em fazer o que devia ser feito. E assim, cegos por suas responsabilidades, ninguém percebeu uma mulher insignificante no topo de um dos prédios.
Em silêncio, ensopada, pingando como um boneco de cera, e sem nome. Havia tantas pessoas no mundo que parecia não haver nenhuma. E, então, ela pulou.
A altura era tanta que seus ossos se tornaram migalhas ao entrarem em contato com o chão frio e sujo. Eu estava na loja da frente, trabalhando, quando vi o vulto cair. Um borrão estranho, grande demais para ser um pássaro, ainda que eu não tenha escutado som algum. A única coisa que se escutava eram os trovões.
Ao ver o corpo, depois de minha curiosidade tomar conta de mim, não soube como reagir. Eu não conhecia aquela mulher. Mas existia algo instintivo em nós, seres humanos, que aflorava quando alguém de nossa espécie morria na nossa frente. Quem sabe, medo. Compaixão. Curiosidade. O que poderia ter acontecido?
O senhor da loja ao lado foi o primeiro a ligar para a emergência, o mais curioso de todos nós. Se aproximou do corpo imóvel e até tocou nele, tentando ver quem era a vítima. Ele também não a conhecia.
O evento nem foi parar nos jornais. Muita gente se matava naquela cidade, e quem poderia julgá-los? Eu mesmo já quis. Mas sem notícias, tudo se resumia à especulação.
"Os amigos dela disseram que ela já estava com comportamentos estranhos há algum tempo", "Ela não era suicida", "Mas com certeza estava doente". A fofoca continuou por bastante tempo, os rumores só aumentavam e se tornavam cada vez mais mirabolantes, só piorando quando mais duas pessoas fizeram a mesma coisa. Do topo de prédios altos, se jogaram e se espatifaram no chão.
Elas não eram parentes, não se conheciam, nem ao menos eram parecidas, mas por algum motivo se mataram da mesma forma no mesmo mês. Não era comum, mas também não era tão alarmante. Não para as pessoas da cidade que já vira de tudo. E outro instinto começava a surgir nos peitos das pessoas.
Uma coceira, uma vontade inexplicável de ver os corpos. Matar a curiosidade, entender em que posição estavam, uma última olhada antes da pessoa desaparecer para sempre. Eles tiravam fotos que se espalhavam pela rede tão rápido quanto saíam do ar. Mas eles encontravam maneiras. Sites proibidos, desconhecidos. Até os mais sensíveis não conseguiam resistir. Eles negavam, mas sabiam que queriam ver. Todo mundo estava vendo, fazendo careta para a tela do celular, eles precisavam ver. E viram.
Eu vi, poucos dias depois, quando o senhor da loja ao lado caiu como um saco de carne na calçada, vindo do topo do prédio. Seus dois fêmures saíram para fora da perna com o impacto, seu corpo quase caiu perfeitamente em pé, e a visão foi demais para mim. Corri para o banheiro e comecei a vomitar, tanto que um pouco do ácido gástrico subiu e eu não consegui respirar por bons dez segundos antes de arfar, frouxo e desamparado.
O número continuava crescendo. Cinco, nove, vinte e três suicidas acabando com a própria vida da exata mesma maneira em um espaço muito curto de tempo. Foi difícil esconder as imagens da população, e mais difícil ainda fornecer uma explicação. Porém, eles encontraram algo, pelo menos alguma informação concreta.
Não se aproximem dos corpos.
Ficou claro quando a maioria das vítimas eram da área da saúde, trabalhavam em necrotérios ou em funerárias. Lentamente o suicídio daquelas pessoas se tornavam acidentes. Não era algo psicológico, apesar de certamente ser cerebral.
A segurança em prédios aumentou, ninguém podia subir sem autorização. Todos ficavam atentos ao menor sinal de mudança comportamental, qualquer um que se mostrasse levemente abalado devia ficar em quarentena, presos a seus quartos até que a polícia chegasse para levá-los para algum lugar que ninguém conhecia. Agora sim, as notícias iam para o jornal, na televisão e na Internet, um aviso constante de ficar longe dos corpos. E nem assim funcionou.
As pessoas em quarentena começaram a se matar dentro dos quartos, batendo a própria cabeça ou enfiando uma caneta dentro do próprio olho. Os cenários se agravavam e de repente todo mundo começou a ficar com medo de, um dia, de repente, só se matar sem poder evitar. Pela primeira vez desde que nasci, testemunhei a cidade silenciosa.
Quando meu colega de quarto um dia passou a ter o olhar fundo, a perder o apetite e a não se mover por longas horas, eu tentei falar com ele. Suas frases se demoravam, arrastadas e sem vida, quase sem coerência. Não consegui mantê-lo no quarto. Talvez ele pudesse ter alguma chance de eu estivesse o monitorando, vigiando para impedir qualquer fatalidade.
De certa forma, funcionou. Quando ele tentou enfiar uma faca no próprio peito, eu o impedi. Isso o fez ficar agressivo, hostil; eu não tive outra escolha a não ser lutar com ele. O barulho dos passos pesados, das coisas caindo e das batidas na parede atraiu os moradores, que chamaram a polícia. Alguns até bateram na porta, mas eu estava ocupado demais para abrir.
Ele havia me prendido contra o chão, e eu podia ver sua garganta se movendo como se ele fosse vomitar em cima de mim. Seu olhar continuava sem emoção alguma enquanto ele lentamente se aproximava e eu me debatia, em pânico absoluto. Talvez aquela fosse a minha hora, talvez eu não devesse ter me metido.
Sangue.
Puro sangue saiu da boca dele, diretamente para a minha pele. Aquele líquido morno escorreu pela minha bochecha até o carpete, o tecido e eu ficando manchados para sempre. Quando a polícia chegou, já era tarde demais. Meu amigo estava em cima de mim, desmaiado, mas vivo, e eu estava traumatizado. Me recusei a responder qualquer coisa durante todo o processo de ser arrastado, colocado dentro de um carro e levado para o lugar que ninguém conhecia.
Não era nada incrível. Apenas uma instalação médica, mas com celas. Tudo o que se ouvia eram gritos e gemidos de dor, então de repente eu sentia falta dos sons da cidade.
Na primeira hora em que estive lá, me submeteram a sete testes. Os especialistas conversavam aos sussurros, mal fazendo sons para se mover, e se protegiam com diversas camadas de proteção que só não tapavam seu olhar de pena. Algo me dizia que não havia nada que eles pudessem fazer. Que eu não estava ali para ser ajudado, mas para ser contido.
— Eu vou me matar? — perguntei à uma enfermeira, depois que ela tirou um pouco do meu sangue. Houve hesitação antes de sua resposta pesarosa.
— Não, você vai morrer.
A diferença não era muito clara para mim. Significava morte do mesmo jeito. Não era como se eu fosse ser assassinado, ou falecer de causas naturais. Eu só entendi quando me amarraram a uma maca em uma sala isolada, sem nada no cômodo além de uma janela, de onde os cientistas me observavam.
Eu chorava de desespero, sabendo que não poderia nem me despedir da minha família. Tudo isso porque tentei ajudar meu colega de quarto. Não tinha sentido em me debater daquele jeito, eu nunca sairia dali. Foi só quando me conformei e quando as lágrimas pararam de obstruir minha visão, que consegui ver, na janela, o reflexo de um monitor que estava atrás de mim.
ATIƧAЯAꟼ
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