Contagem de palavras: 1265
Abri meus olhos. Senti-os levemente inchados, as pálpebras não se moviam tão fácil. Era ainda mais difícil acostumar minha visão com as paredes todas brancas e a luz estridente e agressiva sobre mim. Este certamente não era meu quarto.
E então me ocorreu que eu não sabia — não exatamente — como deveria ser meu quarto. A única coisa que eu podia sentir era que havia algo de errado, algo de diferente, mas era impossível definir o quê. Eu sentia que eu deveria ter um nome. Deveria? Entretanto, o que era, afinal, um nome? Eu conhecia outras pessoas com nomes? Não, não deveria conhecer. Eu não conhecia nada antes da luz forte em meu rosto, ainda que, de alguma maneira, soubesse que devia existir algo antes disto.
Com certeza um sentimento estranho. Era possível que eu apenas tivesse passado a existir naquele instante?
E então eu vi... Você. Outra pessoa, como eu, agachada como um... animal. Animais... Não podia me recordar do que eram nem como se pareciam... mas com certeza deviam agir como você. Uma criatura arisca, debruçada sobre os joelhos, suja e magricela. Os cabelos já longos se desfiando para todos os lados, escorrido de oleosidade.
Nada havia naquele cômodo. Não havia entrada ou saída, nem... aqueles buracos que deviam ficar nas paredes. Como se chamavam, mesmo...? Havia razão para eles? De qualquer forma... As únicas duas coisas que existiam era você, e uma caixa no alto de uma das paredes, igualmente branca.
Eu não sabia nem mesmo como deveria me portar. Se deveria dizer alguma coisa. Por quê eu deveria? Era isso? Tudo que existia?
E antes que eu pudesse realmente fazer algo, um som soou de alguma direção, um bipe agudo, mas curto. E depois, sons como algo rolando. E, daquela caixa, caiu uma bola. De tamanho médio, cabia na palma da mão, e parecia consistente. Fiquei esperando que algo acontecesse. Você correu para a caixa em desespero, pegou a bola nas mãos, fez um gesto lento para a caixa e começou a comer.
Era comida. A bola parecia dura, mas desmanchava aos dentes, e parecia apetitosa, pela maneira como você a devorava.
Em seguida, mais uma coisa aconteceu, mas, desta vez, você parecia confusa. Dois bipes. Barulho de coisas rolando. Cinco bolas caíram da caixa.
Sua expressão confusa era quase inibidora, mas você permaneceu onde estava. Algo em você devia saber que a curiosidade não valia a pena. Talvez pudesse ser confundida com petulância. Portanto, eu peguei as bolas, e as comi. Não havia percebido como estava com fome. Mas você parecia em desespero, como se não comesse o suficiente há muito tempo. Então eu lhe dei duas bolas. Assim, nós ficávamos com 3 cada. Sua hesitação em comer minha comida era perceptível. Você cedeu no final das contas. E fez o mesmo gesto lento para mim, como um agradecimento.
E, então, eu comecei a aprender com você. Meu surgimento parecia agradar você. A cada algum período de tempo, soava primeiro um bipe. Uma bola caía. E depois, dois bipes, e cinco bolas caíam. Eu continuava as dividindo com você. Isso se seguiu por muito tempo. E, de repente, eu também estava fazendo o gesto para a caixa.
A primeira coisa que você me disse foi:
"Devemos agradecer ao alimentador".
Nós passávamos o tempo conversando sobre a comida, ou brincando, ou dormindo, ou comendo quando o alimentador nos enviava comida. Era uma existência pacífica, por mais que eu não a entendesse.
Uma época ruim chegou. Não havia comida. O alimentador passou muito, muito tempo sem enviar absolutamente nada. Primeiro minha barriga roncava, mas depois só havia uma dor, como pontadas, sem fome. A fome era paralisante. Ficamos em silêncio, exceto quando você se ajoelhava e implorava.
"Me perdoe, Alimentador! Por favor, por favor nos ajude!"
E pela primeira vez eu entendi que o Alimentador não era a caixa. O Alimentador, para você, era uma pessoa, como eu ou como você, que enviava as bolas. E eu lhe questionei. Então era um de nós?! Por que estava nos castigando?! Não deveria estar do nosso lado?! O Alimentador não parecia responder. E quando me voltei contra ele, você me repreendeu.
"O Alimentador sabe de nossas necessidades. Ele está nos testando."
Por que? Por que ele estava nos testando? Por que precisávamos sentir fome? Por que tínhamos de sofrer?
E, enfim, um bipe soou. Você foi correndo, aos prantos.
"Eu te agradeço, Alimentador!". E fez o gesto.
Não houve dois bipes após isso. Você ganhou duas bolas. E eu, nenhuma. Você não as dividiu comigo.
"Estou com fome", você me disse. "Você não merece a comida agora".
Por que?!
"Você se voltou contra o Alimentador. E Ele não alimenta duvidadores".
E quem ou o que afinal era o Alimentador?!
"É como nós, mas não um de nós. O Alimentador é superior" e você apontou para o teto "Ele manda a comida de lá".
Onde é "lá"?
"Em algum lugar. Em todo lugar."
Ele pode nos ouvir?
"Ele sabe de todas as coisas."
Por que ele não aparece?!
"Ele não precisa", e você me mostrou o último pedaço de sua comida, que logo foi para sua boca. "Ele se prova para nós. Ele manda a comida. Eu te agradeço, Alimentador."
Eu continuei enfurecido. Me deitava em meu canto e resmungava, e xingava o Alimentador. Me perguntava por que ele não me dava comida?! Se ele sabe de todas as coisas, devia saber que sofro com a fome. Devia saber que eu me enfureceria com alguém que podia me ajudar, mas não iria apenas para me testar. Devia saber. Ninguém gostaria de ser testado. Eu não havia pedido por isso.
Você continuava leal ao Alimentador. Aquilo funcionava para você.
"Não é possível ser feliz sem obedecer ao Alimentador".
Se ele fosse me punir, então é claro que não seria possível. Mas eu podia fingir.
Me desculpava ao Alimentador a cada momento que me lembrava de fazê-lo. Implorava por perdão, e agradecia pela comida que Ele havia me dado no passado.
Nós dois ganhamos cinco bolas naquela vez. Então era isso. Era melhor obedecer.
Permanecemos em nossa existência, gratos pela comida. Se vivêssemos assim, indulgentes, se fizéssemos a vontade do Alimentador, era uma boa existência. Mas eu não conseguia parar de questionar.
Existe mesmo alguém por trás do Alimentador? Os sons que você ouvia, nas paredes, eram mesmo sinais Dele? Ou você gostaria de acreditar que eram?
Se fosse realmente alguém, então ele não era bom. Seria de se imaginar que alguém com tanto poder assim desproviria de qualquer humanidade. Se fosse alguém, certamente não era onisciente. Não sabia de muita coisa. Quem sabe, pudesse ser todo poderoso. Mas era fácil ser todo poderoso quando ele não aparecia. Era fácil ser todo poderoso quando se prendia todos em uma sala sem saída. E para mim, era isto que provava que não havia um Alimentador.
Você só achava que havia um porque isso tornava mais fácil viver, em alguma concepção doentia da sua mente. Para mim, entretanto, tornava mais difícil. E foi mais pacífico quando deixei de culpar ou agradecer alguém que não existia.
Quando você ficou doente e morreu nos meus braços, eu tive um apagão. Éramos voluntários de um experimento que durou cinco anos. Você ficou os cinco anos, eu só apareci depois do segundo. Tivemos parte de nossas memórias apagadas, apesar de termos mantido processos cognitivos. Você estava disposta a morrer por isso.
Visitei a base de operação do projeto. E achei que gostaria de saber... Era um mecanismo de dispenser automático completamente aleatório. Não havia ninguém. Era só... o que era.
O mecanismo.
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