Contagem de palavras: 9619
Imagem das personagens principais no final do texto.
VINTE E TRÊS DIAS ANTES
A placa de entrada da cidade rangia ao ser balançada pelo vento. O som quase ritmado, constante, lentamente indo e voltando quando menos se esperava. Mas ninguém estava lá para ouvir, porque ninguém entrava naquela cidade. Não era tampouco caminho para outra, então não se viam nem carros de passagem.
Como uma vila esquecida, Hayfell às vezes parecia não existir. Sua placa pequena e velha não tinha o privilégio de ser reformada, então se despedia de sua pintura conforme ela descascava, em especial das letras do meio. Adolescentes ousados ajudaram a remover o "a", então, ao ver de longe, se parecia simplesmente com "Hell".
Porém, para a infelicidade deles, a cidadezinha pitoresca de menos de dois mil habitantes não tinha nada de infernal. Praticamente todos se conheciam e se ajudavam como podiam. As brigas não duravam muito, mas todos sabiam da vida de todos, então falar mal pelas costas era comum.
"Uma cidade de cobras", algumas senhoras costumavam dizer, num sibilo.
— Detesto outubro — cuspiu Oliver, junto com seu chiclete, direto na grama seca. O tempo nublado parecia estar a provocando. Emily balançou o corpo enquanto se apoiava de costas no capô da caminhonete velha do pai de Oliver, apertando os olhos para encarar o céu.
— Seria legal se não fosse em Hayfell. — concordou parcialmente. Vivian deu de ombros.
— Eu gosto.
— Além do Halloween ser uma bosta, ainda chove o tempo todo. E me dá alergia. — Oliver parecia entusiasmada para continuar sua lista de motivos para odiar Outubro.
— Eu gosto, tem meu aniversário — rebateu Vivian.
— Eu já disse que a gente devia começar uma festa de Halloween com o pessoal da escola. Pode ser legal. — falou Yara pela primeira vez. Todas as outras três olharam para ela.
— Sério? A gente já fez um tipo de baile no ginásio uma vez e foi horrível. Lembra? — Oliver permanecia pessimista.
— O ponche com gosto de caramelo queimado — Emily e Vivian relembraram, em uníssono.
— Mas a gente era criança — tentou — Agora a gente pode planejar a festa. E não colocar muito açúcar no ponche.
— Nah — ela abria outro chiclete sabor morango. — Ia ser uma bosta. — Yara respirou fundo, derrotada. Não tinha energias para argumentar.
— Pelo menos minha festa vai ser legal — Vivian falou. — Tô pensando em fazer festa a fantasia, e já que é no dia trinta… É praticamente uma festa de halloween. Só que com bolo.
— Nem tem loja de fantasia aqui. — Oliver protestou mais uma vez. — Na verdade, a que tem só vende máscara sem graça, de palhaço, ou aquelas de encaixar na cabeça, de animais. Eu não quero ser um cavalo pro halloween.
— Você já é uma égua no dia a dia. — provocou Emily, com um sorrisinho no rosto. Oliver jogou o papel do chiclete no rosto dela.
— Não vai ser pro halloween. Vai ser pro meu aniversário. — Vivian disse. — Meus primos vão vir. Eles são legais.
— Bom, eu não tenho escolha, mesmo. Vou de defunto, e me matar no meio da sua festa. — Oliver mascava audivelmente.
— Por que você é assim?
— Eu nasci assim — respondeu, mas não parecia falar muito sério. Estava só falando por falar.
— Bom — e respirou fundo — Você não tem mesmo escolha.
◇◇◇
ONZE DIAS ANTES
Emily parecia nunca ter estado tão concentrada. Com sua mão dominante, a esquerda, segurava uma tesoura com os dedos, e ia lentamente fazendo seu caminho pelas linhas demarcadas no papel laranja em formato de abóbora. A musculatura rígida e os olhos castanhos travados sem piscar, ela não queria que nenhum centímetro ficasse torto. Mas ela já estava ficando com cãimbras.
— Quantos faltam? — sua voz soava cansada.
— Hm… Dois. — Yara a respondeu, para seu alívio. Era um trabalho em conjunto: Yara pegava o papel laranja e fazia um contorno no molde de confeitaria em formato de abóbora, além das linhas para escrever. Emily, então, recortava os convites, onde Vivian escrevia a exata mesma coisa em todos. Por fim, Oliver desenhava um padrão de abóbora esculpida na parte de trás com lápis preto.
— Graças a Deus. — Vivian também estava aliviada — Meu dedo vai ficar com um calo de tanto escrever.
— Pelo menos é pouca gente. — Yara a consolou. Apenas dezesseis pessoas iriam à festa da aniversariante, o que, se for reparar bem, não é tão pouca gente assim. Mas não seria um festão.
— Será que todo mundo vem? — Oliver ponderou.
— Pelo menos seis pessoas vêm além de mim. Vocês três e meus três primos.
— E sua família.
— Eles não contam.
— Cês tão ouvindo isso? — Yara perguntou, de repente.
— Não — Oliver disse de instinto.
— Sh! — Yara fez. Ela olhou para um ponto aleatório do quarto de Vivian, tentando ouvir.
Era noite. Alguns grilos cantavam sem descanso na distância, e era possível ouvir o fraco soar profundo do ronco do pai de Vivian no outro cômodo. Segundos que pareceram longos minutos passaram, recheados de uma antecipação quase palpável. Todas elas mal respiravam, com medo que o som de seus pulmões interrompesse algo muito importante. E, se fosse reparar, bem lá ao fundo…
Frrr…
O som da tesoura de Emily no papel preencheu seus ouvidos, cortando a concentração. Yara olhou brava para ela.
— Falei pra ficar quieta!
— Eu não tava ouvindo nada… Nem fiz barulho!
— Porra, mas se você prestasse atenção mais um pouco-
— O que você tava ouvindo? — Vivian tentou se solidarizar.
— Parecia um grito meio abafado. Não sei dizer. Ou, tipo, alguém arranhando as paredes. — respondeu, perturbada. Todas elas a olharam com preocupação. Talvez fosse mais um dos episódios. — Parem de me olhar assim, eu sei o que eu ouvi, se não fosse a Emily-
— Eu só cortei o papel! — defendeu-se, ficando irritada também.
— Gente, tá bom — Vivian as interrompeu. — Vamos descansar um pouco, tá? Cês querem ir dormir e terminamos amanhã?
— Calma, Vivian, é sério. — Yara voltou no assunto. — Vocês não ouviram nada mesmo? — dessa vez ela parecia decepcionada.
— Não, mas às vezes parou quando você falou. Sempre acontece isso, de quando a gente quer mostrar algo pra alguém a coisa só some. — consolou. Ela era sempre boa em confortá-la. — Vamos comer alguma coisa e deitar, minhas vistas já estão ficando embaralhadas de escrever.
— Tá bom — cedeu. — É que eu fiquei ouvindo um tempão. — ela queria se explicar.
— Sim, mas agora parou, né?
Yara pausou por um momento, tentando buscar aqueles gritos arrastados nos sentidos. Não apenas um, mas vários, de diversas vozes diferentes, berrando ao fundo. Talvez estivesse acontecendo alguma festa. Devia haver alguma explicação. Ela não tinha um episódio há cinco anos.
— É. — disse, por fim.
— Gente, cês podem ir, eu vou só terminar de recortar essas últimas duas, porque minha mão vai acordar morta amanhã. — Emily brincou.
— Beleza… Cê vem, Oliver?
— Vou, tô morrendo de fome. — ela já largou o lápis e se levantou, dando uma bela espreguiçada. Seu estilo mais masculino e desleixado ia embora completamente quando estava de pijamas: eram sempre cor-de-rosa com alguma estampa florida. Como ela era mais encorpada, era engraçado vê-la com shorts apertadinhos.
— Não demora, hein. — Vivian disse à Emily.
— Não vou. — respondeu, se virando pra dar um sorriso.
◇◇◇
DEZ DIAS ANTES
Já passava da meia noite. Oliver comia bolinhos recheados com geleia de morango pré-prontos. Yara e Vivian comiam cereal bem açucarado junto com leite, e conversavam aos sussurros na cozinha. Olhar pela janela a essa hora e ver árvores em formatos estranhos, se despindo de suas folhas lentamente era um pouco arrepiante. Especialmente depois do que aconteceu no outro dia.
— Vai mesmo convidar o Raul? — Oliver perguntou, as bochechas cheias.
— Vou, ele é o mais propenso a deixar a festa interessante. — concordou. Raul era o menino complicado da escola. O pior que ele fazia era ser chato.
— Acho que vou de esqueleto — Yara ponderou alto, sem relação com o assunto. — Eu consigo fazer aquela pintura facial.
— Ah, eu lembro, você fazia muito com a sua irmã no Halloween.
— A gente ganhava uma porrada de doce. — vangloriou-se. Yara era mesmo boa em maquiagem artística, mas a sua favorita era a de esqueleto, então só usava ela em ocasiões especiais, ou quando ficava entediada em casa.
Vivian acompanhou enquanto Oliver abria sua geladeira sem cerimônia e pegava mais alguns bolinhos.
— Você vai de quê, Oliver?
— Sei lá. — ela colocou os bolinhos em seu pratinho. — Vou comprar uma máscara de palhaço, eu acho.
— Eu vou de chucky. Meu cabelo é meio ruivo, se eu bagunçar ele e fazer umas cicatrizes de canetinha no rosto… Fica igual. — Vivian compartilhou.
— Eu posso fazer umas com látex e sangue falso. — Yara disse. — É molezinha.
— Espero que tenha essas coisas lá na loja. — ela de referia à única loja de fantasias de Hayfell. E ela se chamava, literalmente, "Fantasia", o que não era muito encorajador. — Sempre que eu vou lá não tem quase nada.
— Minha mãe vai vir da capital na semana que vem, eu peço pra ela comprar. — Yara já estava se sentindo bem mais calma, com o papo. Suas amigas, em especial Vivian, sempre a faziam se sentir melhor.
Mas é claro que não durou muito tempo.
Desta vez, um som que todas elas ouviram: o som de Emily dando um grito no andar de cima, mais agudo e rápido, como quando se leva um susto. Oliver foi a primeira a largar os bolinhos e sair correndo escada acima para socorrê-la. Yara e Vivian foram logo atrás.
Ninguém mais parecia ter acordado, e provavelmente se tinham, acharam que eram só as meninas fazendo bagunça.
Conforme elas subiam a escada, Vivian na frente, estavam com tanta pressa que Yara perdeu um degrau pela escuridão e tropeçou. Sua cabeça disparou diretamente para o degrau mais próximo, batendo a testa bem na quina. O baque foi tão forte que até Oliver, que já estava na porta do quarto, escutou.
Vivian que estava no meio ficou dividida entre ver se Emily estava bem e ajudar Yara, e como uma das amigas já estava com Emily, foi na opção mais óbvia.
— Yara — chamou, ajudando-a com cuidado.
— Ai, caralho — Oliver grunhiu, mas não para elas. Estava reagindo a algo no quarto, e isso chamou a atenção de Vivian, quem se virou para olhar. Infelizmente, naquele breu, tudo que era visível eram as silhuetas de suas amigas e Emily segurando a própria mão com força. Ela deduziu que ela havia se cortado com a tesoura, então se voltou para Yara, que já estava olhando para Vivian, a cabeça erguida.
No centro de sua testa, um corte curto e profundo expelia uma quantidade considerável de sangue escuro, as gotas se transformando em pequenos rios descendo pelas sobrancelhas, pelo canto interno dos olhos, e depois as bochechas, pela boca, até finalmente pingar do queixo para o chão.
Vivian nunca tinha visto uma ferida tão feia em sua vida. E isso a travou. Ficou encarando o machucado boquiaberta sem saber o que fazer.
— Vi — Oliver chamou — Acho que a gente tem que ir pro hospital.
Emily chorava silenciosamente, seu corpo entrando em choque para processar a dor que sentia. A ponta de seu dedo indicador direito, pouco abaixo da unha, estava cortada horizontalmente, um corte tão grave que a ponta do dedo estava pendendo. Se não fosse o osso ali, teria caído.
— É… — concordou, revelando o rosto em transe de Yara ao se virar. — Eu também acho.
◇◇◇
QUATRO DIAS ANTES
Os primos de Vivian eram mesmo gente boa. Eram três meninos, Theo, de dezessete, Dylan, de quinze e o mais novo, com apenas doze, Mark. Vinham da capital do estado, para eles Hayfell era como o sítio da vovó, uma roça levemente mais moderna.
As garotas conheciam especialmente Theo, um geek de primeira que detestava o péssimo sinal que a cidadezinha oferecia. Ele reclamava sobre isso constantemente, mas gostava muito de Vivian, então até que não era tão ruim. Dylan gostava de pagar de badboy. No último ano estava até usando óculos escuros dentro de casa, mas desta vez apenas uma jaqueta de couro.
Por fim, Mark adorava a sua avó, seus tios, e os cavalos. Podia morar em Hayfell se seus pais deixassem. O único problema era que era intrometido, teimoso e inconsequente, como qualquer outro garotinho de doze anos sem muita atenção dos pais. Então Vivian ficava por conta dele, por ser a mais velha, mas neste momento tinha a desculpa de visitar sua amiga constantemente no hospital.
Não era o que ela gostaria de estar fazendo, especialmente não tão próximo do seu aniversário. Não gostava de ser egoísta, mas não queria ter que cancelar a festa de dezoito anos.
Yara ficou desacordada por um dia inteiro depois do acidente. Da casa até metade do caminho até o hospital, alucinava e falava diversas coisas sem sentido, provavelmente frutos de uma concussão. Os pais dela temeram que o trauma tivesse sido muito forte, mas agora ela já estava conversando normalmente e fazendo as coisas sozinhas pelo quarto do hospital, sem sequelas. Só precisava ficar com uma bandagem na cabeça até que o corte se fechasse e repousar.
O dedo de Emily também estava bem. Como não foi arrancado, e não cortou o osso, os médicos conseguiram fazer procedimentos e enfaixá-lo, o que o traria de volta para o lugar. Só demoraria uma quantidade de tempo considerável até que cicatrizasse e desinchasse.
No dia seguinte a tudo, Oliver teve uma infecção alimentar por causa dos bolinhos. E também estava bem perto de ficar cem por cento melhor. Tudo parecia ter dado errado de uma vez, como uma série de infortúnios que veio para tentar acabar com a semana de Vivian. Mas ela jamais deixaria isso acontecer.
— Você ainda vai de esqueleto? — perguntou, debruçada na maca de Yara, quem estava deitada comendo banana picada. Yara respirou fundo.
— Não sei.
Não foi muito entusiasmado.
— A gente estava conversando, eu vou de Chucky, a Oliver de palhaço e a Emily de fantasma. Talvez você possa mudar a fantasia pra uma de múmia, pra esconder a bandagem na cabeça — sugeriu sorridente.
— Viv, eu não sei se vai dar… — ela não tinha muito ânimo. Porém, algo no âmago de Vivian a dizia que aquilo não tinha apenas a ver com o fato de ela ter se machucado. A expressão que ela fez foi o suficiente para que Yara continuasse. — Eu tô tendo dores de cabeça constantes, não posso arriscar piorar as coisas.
— Mas… Ainda tem três dias até minha festa. Eu achei que não tivesse ficado sequelas.
— Foi muito perto de um traumatismo craniano. Só de conversar eu já sinto minha cabeça latejando. — resmungou, num tom de voz baixo e arrastado. Vivian se endireitou. — Você ainda pode fazer a festa. Eu só não vou conseguir ir.
— Tem certeza que é só por causa disso? — ela resolveu perguntar. Yara se moveu, desconfortável na posição.
— Só?
— Você entendeu o que eu quis dizer. — rebateu. A outra repuxou a boca, mastigando sua banana.
— É, é só porque eu bati a minha cabeça e quase entrei em coma.
— Para, Yara. Você sabe que não foi isso…
— Você é tão egoísta. — falou, de repente, e Vivian não teve tempo de responder, primeiro porque não sabia como reagir e segundo porque a porta do quarto se abriu, devagar. Ela pensou ser uma enfermeira, mas o cabelo cacheado bonito e a pele escura não deixavam mentir: era a mãe de Yara, voltando de viagem.
Ela sorriu ternamente para as duas, mas os olhos eram preocupados. Vivian se levantou enquanto ela caminhava para mais perto da maca, e Yara ficou aliviada por ver a mãe.
— Garotas… Eu vim o mais rápido que pude. — o que era verdade. Ela havia chegado um dia mais cedo. — Yara, meu amor… — ela estava cheia de cuidados, e levou sua mão até o rosto da filha como se ela fosse feita de cristal.
— Eu vou… Deixar vocês. — Vivian murmurou, já no caminho para a saída. A mãe de Yara a chamou, mas ela já estava na porta e fingiu não ouvir. Estava mesmo sendo egoísta. Mas era justo que ficasse chateada com os imprevistos. E foi disso que tentou se convencer no tempo todo em que caminhou do hospital para casa, e depois para a loja fantasia, com seus três primos.
Não queria pensar no que aconteceu, nem em como Yara parecia tão sombria ao dizer aquilo. Seus olhos inchados e as olheiras profundas, a boca seca pálida, o pescoço estranhamente mais magro. Parecia outra pessoa, com a voz arranhada e tão sincera. Como se carregasse uma mágoa profunda por Vivian. Ou talvez ela só estivesse pensando demais.
— Tá, não ficou tão ruim — Theo saiu de trás da cortina do minúsculo cubículo que servia de provador. Ele nem precisaria usá-lo, porque tudo que fez foi amarrar uma capa alegórica de vampiro no pescoço. Ele deu uma voltinha. — E aí?
— Tá ótimo — Vivian respondeu. Ela não queria ser quem perguntaria o preço do aluguel para Thomas-O-Esquisito, o vendedor. Ele tinha um olhar cansado, uma barbicha desgrenhada e a postura de um camarão, mas era surpreendentemente intimidador.
Quase não dizia nada, entretanto, parecia sempre interessado no que Vivian dizia, e tamborilava os dedos no balcão como se tentasse conter algo dentro de si mesmo.
Theo nem tinha reparado na atitude do vendedor:
— Quanto tá mesmo, o aluguel?
— Vinte por dia.
— Tá… Vou levar. — ele não tinha mesmo outra opção.
Enquanto estava no balcão, e Thomas passava a máscara no sistema, fez-se um silêncio constrangedor repentino. Foi assim que repararam no vento gelado que corria pelas janelas do estabelecimento, assobiando, e os gritos de algumas crianças lá fora. Durou um instante, e Vivian pensou ter escutado alguém a chamando de um canto da loja.
A direção em que estava revelava uma porta de acesso restrito a funcionários, entreaberta. O lado de dentro era escuro, cheio de vácuo, puxando-a para si. Em uma sensação de vertigem que provavelmente a deixou pálida, Vivian saiu do transe estranho e segurou em seu primo, que a ajudou imediatamente.
— Vi?
— Nhh… — gemeu, fraca.
— O que aconteceu? — Mark veio na hora, largando a arminha de brinquedo que observava. Dylan ainda parecia meio alheio à tudo.
— Não sei, acho que a pressão dela caiu. Tá branca. — Theo explicou, a levando para fora, deixando suas compras em cima do balcão.
Ela nem reparou quando saiu da loja. Quando voltou ao normal, estava sentada, a cabeça escorada nas paredes externas de Fantasia, o vento bagunçando seus cabelos curtos acobreados.
— Oi — Mark sorriu para ela. Theo e Dylan também estavam ali, olhando para ela de cima, como gigantes.
— Tá tudo bem? Consegue se levantar? — Theo perguntou.
— Ah… Consigo… Me deu vertigem… — explicou-se.
— É, sua pressão deve ter caído.
— Eu tinha escutado alguém me chamando — Vivian ignorou, se levantando. — Aí quando olhei… Fiquei assim.
— Deve ter sido alguma criança aqui fora, ou sei lá. — Dylan tentou, abrindo a boca pela primeira vez. Ela desejou que suas amigas estivessem ali.
— Não… Foi diferente. — sussurrou, para ninguém que pudesse entendê-la. Imediatamente em seus pensamentos, veio o dia em que tudo aconteceu. Yara disse ter escutado alguma coisa, talvez fosse o mesmo tipo de alucinação?
Quer dizer, a Yara já tinha histórico com episódios psicóticos, mas não tinha nenhum diagnóstico: não havia um padrão de sintomas que se encaixava em nenhum transtorno desse tipo. Vivian nunca havia experienciado algo nessa magnitude. Todo mundo alguma vez na vida já escutou chamarem o próprio nome quando não estavam, mas aquilo… Parecia ter realmente alguém na espreita, naquele cômodo escuro. Ela tinha vontade de ir lá conferir. Era assim que Yara se sentia quando tinha algum episódio? Era possível desenvolver psicose?
— Vi? — Theo chamou, mais uma vez.
— Oi. — sua garganta estava seca.
— Vamos pra casa, já. — disse, e balançou a sacola de compras na mão. Ele tinha saído para pegar e ela nem percebeu.
— Theo — chamou, confusa.
— Hm?
— Na semana passada, quando as meninas dormiram lá em casa e aconteceu tudo…
— O que tem?
— Você escutou alguém gritando?
— Só a Emily, né.
— Não — cortou-o. — Antes disso. Você escutou alguém gritando ou arranhando as paredes?
— …Não… Tá tudo bem?
— A Yara disse que tinha escutado, mas ninguém ouviu. — explicou, sem olhar para ele. Não suportava ser olhada como se estivesse ficando maluca.
— Ah, eu tava vendo um filme. — Dylan falou. — Tinha uma mulher gritando numa cena e um cara serrando a perna dela fora.
Mark parecia perturbado.
— Era de terror. — explicou-se.
— Ah. — ela ficou levemente mais aliviada. Elas não escutaram porque a cena do filme acabou. — Então acho que foi isso. — Mas ela parecia estar tentando convencer mais a si mesma do que qualquer outra coisa.
— Relaxa — disse Theo — Pra tudo tem uma explicação. — e sorriu torto, dando um abraço de lado na prima.
Talvez houvesse uma para tudo parecer estar dando errado.
◇◇◇
DOIS DIAS ANTES
Emily removeu a bandagem com cuidado, como a foi instruída pelos médicos. Apenas a de cima, nunca a de baixo. Como fazia com a mão não dominante, era ainda mais difícil ter precisão nos movimentos, e qualquer mínimo toque mais pesado em seu dedo a dava vontade de vomitar e depois desmaiar.
Era sempre mais fácil quando alguém a ajudava, apesar de ela não gostar de pedir para seu pai. Então Oliver estar ali era um grande alívio. Por mais desengonçada que ela fosse, suas mãos eram bem firmes.
— Tô machucando?
— Não — Emily garantiu, rindo porque já era provavelmente a décima vez que ela perguntava. Ela observou a amiga enquanto ela enfaixava a ponta de seu dedo. Oliver tinha sardas que salpicavam do seu rosto até seu torso, criando constelações marrons por seus ombros. O cabelo bem curto repicado realçava bem os olhos azuis, e ela tinha os braços fortes. Pena que era mais burra que uma porta quando se tratava de flertes.
Era natural que Emily se sentisse atraída por ela, por sua já conhecida, mas escondida orientação sexual. Afinal, ela foi a última a entrar no grupo. Vivian e Oliver se conheciam desde o berço, e Yara completou o trio há cinco anos, quando entrou para a escola das meninas. Ela estava ali há apenas um ano, depois que se mudou. Mas todas elas se davam bem como se se conhecessem há muito, muito tempo.
— Pronto, é só isso, né? — Oliver olhou ao redor.
— É sim. — ela recolheu a mão, cansada. Fez questão de pensar em um assunto rápido para preencher o silêncio.
— A Yara te contou sobre a Viv?
— Contou. O que cê achou?
— Sei lá. Eu entendo que ela ficou chateada porque a festa não vai ser mais tão legal. Nem sei se vai rolar ainda. Mas também entendo o lado da Yara, ela toda fodida e ainda tendo que pensar em fantasia, foi bem insensível.
Oliver se acomodou na cama, pensativa. Como sempre, mascava um chiclete.
— É, concordo. Só que a Yara tá bem, né. Na medida do possível. Ela podia ir só pra ficar sentada, nem que fosse. — para Emily, a mais errada era Vivian, mas ela sabia que Oliver era enviesada.
— É que ela já tinha aqueles problemas, e depois do que rolou… Acho que ela ficou mais perturbada. Cê viu né, no dia ela tava escutando coisa. — Oliver ficou claramente desconfortável quando o assunto veio à tona.
— Qual seu ponto?
— Que talvez ela ainda não esteja bem totalmente pra ir numa festa. Mesmo que não vá tanta gente. Eu mesma não consegui dormir depois daquilo.
— Ficou com tanto medo assim das vozes na cabeça da Yara?
— Não isso. Depois do outro dia. Na floresta.
— Para — mandou, um pouco irritada. — A gente prometeu que não ia falar disso. Nunca mais.
— Mas é só-
— Nunca mais, Emily. — repetiu, os olhos duros e a voz inflexível. Emily engoliu em seco, mas concordou com a cabeça.
— Enfim… Fala com a Viv, e eu falo com a Yara. Pra podermos chegar num acordo.
— Certo — concordou, já pegando o celular, que ainda tinha a tela quebrada, uma memória palpável do dia sobre o qual não seria comentado, nunca mais.
◇◇◇
Vivian não queria admitir que havia algo de errado. Ela nunca foi cética, mas também não tinha muito orgulho em acreditar no paranormal. Por mais que fosse impossível não acreditar depois daquele dia fatídico, ela ainda gostava de pensar que tinha sido só um sonho ruim. Apenas um episódio misterioso sobre o qual ninguém mais falaria. Morto, e enterrado.
Portanto, para distrair sua cabeça, começou a pensar na festa, evitando também a briga com Yara.
Todas as fantasias já estavam decididas. Theo ia de vampiro, usando aquelas dentaduras de plástico fajutas que doíam na gengiva e sua mais recente aquisição, a capa. Dylan ia de Clyde sem Bonnie. Seu pai tinha uma boina que ele iria pegar emprestada. Mark iria de zumbi.
Os adultos da família não se fantasiariam, mas ficariam na casa, no andar de cima, enquanto a festa acontecia no andar de baixo e no quintal. Teria salgadinhos, refrigerante, ponche sem álcool e atividades como jogos de cartas e afins.
O restante das outras nove pessoas que confirmaram presença iriam de Chapéuzinho Vermelho, Mímico, Fada, Freira, Diabinho, Anjinho, Bruxa, Ladrão e Jason. Todos tinham arranjado alguma ideia, e melhor, nenhuma se repetia, o que já era um ótimo sinal.
Tinha tudo para dar certo, Vivian queria que fosse memorável. Só desejava ter todas as suas amigas com ela. Se Yara não a perdoasse, ela ficaria sem maquiagem, então nem isso seria bom. Talvez ela pudesse adiar? Dia 30 de outubro daria num Domingo, quem sabe pudesse fazer no fim de semana seguinte. Mas todos já tinham recebido os convites… Por que, por que a Emily tinha que ter se cortado? Se não fosse por aquilo, Yara não teria subido as escadas, não teria batido com a cabeça, e Vivian não estaria passando por isso.
E se ela não tivesse sugerido ir na floresta…
Bip bip.
O seu celular apitou com a notificação. Ela olhou com certa rapidez.
> Oi, Viv, como vc tá?
Era Oliver.
Oii >
Tô bem >
Planejando coisas da festa >
Sua amiga ficou digitando por algum tempo.
< A Yara me contou oq aconteceu
Vivian começou a roer as unhas. Não gostava de brigas, ela começava a sentir nervosismo e isso atacava seu intestino. Mas não disse nada, deixou que Oliver elaborasse.
< A Emily vai falar com ela
< Eu entendo q vc tá chateada
< Mas a festa ainda pode rolar
< Ela só não vai se fantasiar provavelmente
< E ficar quietinha
< E vamos ficar de olho nela
Ela abriu um sorriso, satisfeita. Provavelmente ela não poderia tocar música muito alta, e Yara realmente não participaria de nenhum jogo, mas tudo bem. Isso não era preço nem um pouco alto a se pagar pela presença da amiga.
Que bom sério >
Eu tava preocupada >
Eu não quis ser egoísta >
Mas eu entendo que pareceu assim >
< Devia falar isso pra ela
Eu vou >
Vivian parou um pouco nos trilhos para recolher as informações.
Vc tá com a Emily? >
Deduziu.
< Tô na casa dela
< Sem comentários
😏 >
< Tchau
Ela riu para a tela do celular. As mensagens demoravam a ir e vir por causa do sinal ruim, mas ela já estava acostumada. Às vezes, ele caia por horas.
Me conta quando a Yara responder >
< Sim, senhora
E então ela se lembrou.
Ah, aconteceu uma coisa hoje >
Na loja de fantasia >
Vivian enviou mais diversas mensagens explicando o ocorrido, e Oliver recebeu todas, mas não as viu mais. Provavelmente estava dando atenção à Emily. Como não tinha mais o que fazer, aproveitou para mandar mensagens à Yara, pedindo desculpas e discorrendo sobre suas intenções. Porém, ela também não visualizou.
E mesmo sem ninguém com ela, Vivian não se sentia sozinha.
Como uma presença logo atrás dela, um arrepio escondido em seu âmago pronto para eriçar seus pelos, uma imagem sempre na sua visão periférica, ela podia sentir. O peso nos ombros que a assombrava há quase um mês inteiro. Todos os dias, quando o sol se punha, e a sensação aumentava, ela só tentava se acalmar, por mais que sentisse que estivesse se enganando.
Vai passar.
◇◇◇
ALGUMAS HORAS ANTES
As janelas da casa de Vivian emanavam uma iluminação laranja, as duas da frente como olhos brilhantes mediante a paisagem escura. Com o vento forte, as árvores prendiam tortas para um lado, quase evitando a camada espessa de nuvens escuras trazendo uma chuva forte.
Emily de fantasma, usando apenas um lençol com furos nos olhos, não teve muito mais criatividade do que isso. Oliver havia comprado a máscara de palhaço, mas estava tendo uma crise alérgica e não parava de espirrar, então não podia usar. Yara, quem resolveu ir, enrolada em gazes sem muito esforço, como uma múmia fajuta. E Vivian, perfeitamente vestida de boneco assassino, estava feliz que todas estavam ali.
A festa começou às sete. No começo, os pais da garota ficaram na sala cumprimentando as pessoas até que o último convidado chegasse, e depois deixaram o cômodo. Eles voltariam junto com os tios de Vivian na hora de cantar o parabéns para você, mas até então ficariam conversando e bebendo algumas cervejas no andar de cima pacificamente.
Todos pareciam achar a festa promissora: a casa estava decorada com teias de aranha falsas, decalques de abóboras e morcegos pelas paredes, docinhos temáticos e tiras de iluminação LED na cor laranja. Na TV ligada, uma playlist montada pela própria Vivian com músicas alternativas e de pop rock tocavam sem interrupção em um volume pouco acima do considerado ambiente.
Ela havia mesmo planejado muita coisa. Teria até cachorros quentes no quintal se não fosse pela chuva ameaçadora. Mas eles se contentavam com os salgadinhos calóricos em maioria sabor queijo.
Yara não se levantou do canto do sofá desde o instante em que chegou. Sua mãe não queria que ela fosse, e só deixou porque teriam adultos e porque elas chegaram em um acordo de que ela iria embora às dez horas. Ela teria que sobreviver apenas por três.
— Meu Deus — Emily comentou, em pé ao lado da mesa onde estavam os docinhos. Como a mãe de Vivian era brasileira, era comum nas festas dela ela fazer brigadeiro e docinhos de leite em pó com açúcar. Os mais escuros estavam enfeitados com quatro patinhas de cada lado, feitas de raspas de chocolate. Já os brancos tinham um desenho de pupila no centro. — A mãe da Vivian realmente não fica de brincadeira.
Oliver, com sua carranca mal-humorada ocasionada por seus sinos cheios de pus, parecia ainda mais odiar tudo e todos.
— Isso porque você não viu o bolo. — sua voz estava enasalada, e ela se afastou um pouco para espirrar pela milésima vez no seu braço.
— Você já tomou o anti-alérgico?
— Já, mas não faz efeito imediato, né — resmungou.
— Justo hoje você tinha que ter dado essa crise.
— Eu falei — disse, de sobrancelhas franzidas. — Eu odeio outubro, e ele me odeia de volta.
— Pelo menos tem comida.
— Grande bosta. Não consigo nem comer direito sem sentir que tô me afogando. — reclamou, irritada.
— Para com isso, já já você melhora.
— É, quando a festa já estiver acabando.
— Oliver, tenta não ser a pessoa mais pessimista do mundo só hoje. — Emily pediu. Oliver não podia nem bufar.
— Difícil. Pensa bem, o dia dessa festa caiu num Domingo. Domingo já não é um dia bom. Segundo-
— Ah, é uma lista?
— Uma semana antes praticamente todo mundo se fodeu. Você com seu dedo, a Yara batendo a cabeça no degrau, eu com a intoxicação alimentar. Só ela ficou de boa. Terceiro, tá todo mundo estranho ouvindo coisas aparentemente. Quarto, hoje, no dia da festa, eu dou alergia.
Emily olhava para a amiga, as sobrancelhas erguidas, impressionada com a frustração dela.
— Tá tudo dando errado, tudo acontecendo pra não deixar essa festa acontecer e ela tá acontecendo.
— Não sabia que você era do tipo espiritual.
— Eu não sou, eu só não fico enfrentando o universo.
— Então… É do tipo espiritual. Eu achava que você era cética.
Oliver não respondeu, porque teve que soltar cinco espirros curtos seguidos.
— Mas é. — Emily olhou para Yara, quieta em seu canto, com um olhar apático. — Eu também acho que essa festa podia esperar.
◇◇◇
Theo seguia Vivian para todo lado como uma sombra. Ficava parado embaraçosamente atrás dela quando ela parava para falar com algum colega e nunca puxava papo com ninguém. Mas em um momento ela saiu para ficar num canto junto com Yara, Oliver e Emily, então ele não quis atrapalhar. Sua segunda opção foi seu primo Dylan, que cuidava do irmão, Mark.
— Oi — disse, a dentadura de plástico deixando sua voz abafada. Dylan olhou para ele.
— Oi. Cansou de perambular por aí com a Vivian?
— É. Tô meio entediado. — confessou. Festas não eram muito sua praia.
— Tem um pessoal jogando cartas, dá pra jogar com eles. — e apontou para uma área do chão do cômodo, com quatro pessoas sentadas. O restante estava comendo e dançando com as músicas.
— Por que ele pode jogar? — Mark perguntou. Ele não era mais uma criancinha, então respostas mirabolantes não funcionariam com ele. Mas continuava uma criança.
— Porque os adultos ficam bravos quando crianças jogam. Você não quer levar bronca, quer?
— Ah, mas essa festa tá muito chata. Eu não posso fazer nada! — reclamou. Dylan olhou para Theo em desespero. Não queria ter que pajear o irmãozinho a noite toda, e não tinha ideia do que seria apropriado para ele fazer ali. O problema era que Theo também não era muito criativo e muito menos bom com crianças.
— Já sei, por que a gente não vai no estábulo dar petisco pros cavalos? — sugeriu. Ele sabia que o primo gostava dos equinos, e queria sair para pegar um ar. O sorriso no rosto dele foi um grande sim.
— Pode ser!
— Tá bom, então vamos lá. — e o chamou com a mão.
Dylan agradeceu ao primo com os olhos enquanto ele se afastava com o seu irmão. Theo sorriu de canto de volta, e já foi rumando para a porta dos fundos.
O vento frio que correu por eles assim que abriram a porta foi arrepiante. Tão forte que a porta quase voltou nos rostos deles, se não fosse pelos bons reflexos de Theo. Ele riu de nervoso, mas Mark não pareceu se importar, foi correndo para o estábulo pequeno nos fundos da casa. Os dois cavalos que ali ficavam eram Quartos de Milha, um de pelagem alazã tostada e outro de pelagem baia de pampa. Eram Rock e Vanny.
Mark já sabia onde ficavam os petiscos e os pegou sem dificuldade. Só de escutar os sons dos biscoitos dentro do jarro os cavalos já espiaram por cima da porta, fazendo sons parecidos com roncos. Theo os observou pegar da mão do garoto com os lábios, mostrando os dentões. Estava se divertindo, e Theo desestressando, então era um ótimo acordo.
Enquanto isso, do lado de dentro, a festa continuava. Vivian conversava com Sophia, a garota que foi vestida de fada, sobre algum assunto aleatório da escola. Ela olhava ao redor e se sentia realizada ao perceber todo mundo se divertindo tanto. Até Dylan estava se enturmando, falando com Samuel, um menino vestido de mímico.
Tudo ornava para que corresse tudo bem, até Raul sugerir a brincadeira que todo mundo já estava esperando: verdade ou consequência.
— Ah, eu não sei se vou jogar. — Yara resmungou.
— Tudo bem, não precisa — Vivian respondeu, de imediato. Não queria que a amiga se forçasse tanto. — Pode só ficar sentada, você tá comendo?
— Tô, sim — concordou, com um sorrisinho fraco. Suas olheiras pareciam maiores do que nunca.
— Beleza. Qualquer coisa me chama.
— Eu vou ficar aqui com ela — Oliver disse. — Acho que o remédio vai fazer efeito mais rápido se eu ficar quieta.
— Ok — Vivian tentou não parecer muito chateada. Ela se odiava por estar sentindo as coisas que estava sentindo. Parecia maior do que ela mesma. Mais forte.
— Vamos! — Raul gritou, diminuindo mais o volume da música.
O pessoal que jogava cartas terminou o jogo pela metade, e todos se juntaram no chão da sala de estar, entre os dois sofás, onde, em um deles, Yara e Oliver estavam sentadas. No centro do círculo formado, foi colocada uma garrafa de coca-cola vazia.
Como todos se reuniram ali no mesmo lugar, Vivian pôde olhar ao redor e contabilizar as pessoas.
— Onde estão o Theo e o Mark?
— Foram lá fora ver os cavalos — Dylan respondeu. E algo dentro dela estremeceu.
Os cavalos não pareciam tão interessados nos petiscos depois de os terem na boca. E Mark sabia o motivo.
— A Vivian tem uns biscoitos especiais no quarto dela. — comentou, tentando soar despretensioso. Theo, quem estava distraído olhando a paisagem escura, mal o ouviu, então o garotinho teve de repetir.
— Ah… Não acha que esses são bons?
— Eu acho, os cavalos é que não. — e deu de ombros. — Você pode pegar? Eu quero ficar aqui com eles.
Theo sabia que o primo pediria isso, mas não pôde escapar. Ele olhou para a casa, de repente silenciosa. Mark fazia carinho no focinho de Vanny e Mark ao mesmo tempo, as mãos esticadas, mostrando que estava muito ocupado.
— Acho que eles gostaram, sim. — tentou, amaciando a voz.
— Por favor, é rapidinho! Eu quero que eles gostem de mim. — insistiu.
— Tá, tudo bem. — ele respirou fundo. O quintal da casa de Vivian tinha uma cerca alta pelo perímetro, especialmente para que os cavalos não saíssem se por algum motivo escapassem do estábulo. Portanto, não faria mal deixar o primo ali sozinho por um minuto, enquanto ele ia lá dentro pegar os benditos petiscos. Ele até pensou em dizer algo como "não saia daí", mas pareceu bobo. — Já volto.
Mark sorriu satisfeito ao ver Theo caminhar de volta para dentro. Este, por sua vez, não parecia muito animado. Talvez Vivian perguntasse porque ele saiu, e ele teria que pensar numa resposta menos deprimente para "eu não estava me divertindo". Foi isso que ocupou sua mente enquanto fazia seu caminho para a casa.
Porém, assim que entrou, percebeu que tudo parecia mais silencioso, e, ao se aproximar das escadas viu todos sentados em círculo em volta de uma garrafa. Ufa. Ele tinha escapado do verdade ou consequência. E queria continuar assim.
Subiu pelos degraus na ponta dos pés, escutando brevemente a conversa.
— Eu te desafio a mostrar sua conversa com a Dina. — uma voz desconhecida falou, seguida de um suspiro de surpresa e antecipação do restante.
Theo chegou ao segundo andar. Aqui era escuro, o pequeno hall iluminado apenas por um abajur no canto. Estranho. Onde estavam os adultos? Eles tinham saído e ninguém percebeu? Tinham ido dormir? Ainda tinham que cantar o parabéns.
Talvez ele estivesse pensando demais. Foi mais tranquilo até a porta que dava para o quarto de Vivian, e a abriu. O mesmo de sempre. Cama de solteiro no centro de uma das paredes, uma escrivaninha que também era usada de penteadeira, cheia de coisas, um puff no canto, um guarda-roupa embutido na parede, cheio de figurinhas aleatórias coladas nas portas. Não era lá o mais organizado, mas era grande. Ela tinha até o próprio banheiro.
— Tá… — sussurrou para si, olhando ao redor para encontrar os petiscos. Ele devia ter perguntado como era a embalagem, mas agora já estava ali. Então com toda educação, passou a vasculhar pelas prateleiras e estantes do cômodo, até mesmo nas gavetas.
Ele encontrou maquiagem, um sutiã jogado, bilhetinhos aleatórios, livros da escola, coisas desinteressantes e, finalmente, os petiscos. Estavam em uma caixinha azulada com um cavalo estampado, bem no canto dos fundos da escrivaninha, atrás da garrafa d'água de um litro da prima.
— Finalmente. — murmurou. Pegou a caixa e já ia saindo, até que escutou alguma coisa vibrar. Era o celular de Vivian, conectado ao carregador, deixado em cima da mesa de cabeceira. Theo ignoraria, mas ele vibrou mais duas vezes antes mesmo dele sair do quarto. Aí já era demais.
Ele caminhou na direção do celular, olhando para a porta fechada algumas vezes, preocupado que fosse ser pego bisbilhotando. A curiosidade matou o gato. Que bom que ele não era um.
Ao se aproximar mais, lentamente, garantindo que ainda escutava as pessoas no andar de baixo, e que não haviam passos indo em direção do cômodo, ele se assustou com mais uma vibração. Alguém queria muito falar com ela.
A tela iluminou seu rosto, e ele ajeitou os óculos no rosto para ler a última mensagem na barra de notificações.
"Tô indo aí agora".
Eram quinze mensagens, todas do mesmo contato. "Tia Silvia". Ela não tinha nenhuma tia chamada Silvia.
Theo olhou para a porta mais uma vez. Hesitante. Mas não pôde resistir. Pegou o celular e deslizou para cima, para que a aba de inserir senha aparecesse. Era de números, o que facilitava. Ele pensou um pouco. Como o celular tinha digital, provavelmente Vivian raramente usava a senha de dígitos. Então teria que ser algo fácil de lembrar.
1030, ele tentou. Não. 3010? Não. 301004. 103004. Última tentativa antes de bloquear o aparelho. O dia primeiro ou o mês primeiro? Dia. A mãe dela era brasileira, eles usavam o dia primeiro. 30102004.
— Nem fudendo.
Desbloqueado.
— Sério, Vi? — desdenhou, da senha óbvia. Estava sorrindo, se sentindo um hacker. Mas não tinha tempo a perder. Foi até o aplicativo de mensagens e abriu a conversa. Só então percebeu que talvez não tivesse sido uma boa ideia, porque apareceria que as mensagens foram lidas. Bom, agora já era.
A foto da Tia Silvia era de uma mulher ao lado de Yara e mais uma menina. Era a mãe de Yara?
Theo rolou as conversas para cima. Percebeu que as quinze mensagens respondiam a uma de Vivian.
Oi tia, nós decidimos ir pra pizzaria do Gary, a Yara vai também. Vc pode pegar ela lá depois. >
< Ué, querida, como assim?
< Sua mãe já não tinha feito as comidas?
< Porque não pedem a pizza em vez disso?
< A Yara não tá 100% recuperada, eu só deixei ela ir porque ia ser na sua casa, e fica perto da minha
< Ela também não me avisou nada
< Tem certeza que ela não prefere vir pra casa?
< Já aproveitaram bastante juntas
< Vou mandar msg pra sua mãe
< Vivian, sua mãe não tá com o celular?
< Fala pra Yara me atender
< Vivian, eu tô indo buscar ela aí então
< Cadê vcs?
< A pizzaria já fechou
< Vc mentiu pra mim?
< Tô indo aí agora
O sorriso de Theo havia mudado para uma expressão confusa. Pizzaria do Gary? Mas isso ficava do outro lado da cidade. Por que Vivian disse que elas iriam pra lá? Por que a mãe de Vivian não atendia? E porque Yara também não?
Naquele instante, uma onda de sensações estranhas avassalaram seu corpo. Aquele sentimento de ansiedade, de que algo horrível estava para acontecer, que te dava palpitações, fazia parecer que você estava com os níveis de adrenalina equivalentes a de alguém fugindo de um assassino, mesmo estando parado. Theo não sabia o que nada daquilo significava, mas sabia que algo não estava certo.
Ele bloqueou o celular, pegou os petiscos e saiu do quarto, agora mais desconfiado de onde seus pais e tios estavam. Mas talvez já tivesse passado tempo demais. Talvez Mark viesse atrás dele e estragasse sua furtividade. Então ele desceu as escadas, devagar assim como subiu. Seu coração batia tão forte que ele temeu que fosse audível.
— Oliver, é verdade que você é uma amiga de merda? — ele escutou, de repente, a voz de sua prima na sala. Mas não quis se virar para ver. O silêncio de repente era palpável.
— Muito engraçado, mas eu não tô jogando. — Oliver respondeu, sem levar a sério.
— Quando você ia me contar que vai embora da cidade?
— Quê? — a voz dela parecia afetada agora.
— É. Achou que eu não ia descobrir?
— Vivian, para. Não acredito que tá fazendo esse show na frente de todo mundo.
— Não… Eles precisam estar aqui.
— Ahn?
— Na floresta… — falou, mais baixo. — Você não sabe o que aconteceu comigo… Mas elas me mostraram.
— Vivian, do que porra você tá falando? Para, a gente conversa disso depois, pode ser?
— Não! — gritou, só que dessa vez a voz dela não parecia ser dela. Não era distorcida, nem num timbre diferente, só… Parecia outra pessoa. Agora Theo se virou para olhar. Os colegas de classe das meninas ou se levantaram ou se afastavam devagar, confusos.
— Tá, tudo bem. Eu ia te contar depois do seu aniversário, pra não estragar as coisas. Eu não vou sumir pra sempre. — garantiu.
— Você não pode me deixar.
— Vivian, o que tá acontecendo com você?
— Eu quero ir embora. — Yara disse, de repente.
— Fica aí! — ordenou Vivian, na mesma voz de antes. Theo se voltou para a porta dos fundos, e olhou pela pequena janela de vidro nela. Não fazia ideia do que estava acontecendo, mas não queria ficar ali para descobrir. De repente não tinha mais curiosidade. Então abriu a porta. Ou, pelo menos, tentou.
Estava trancada.
E algo crescia ali dentro da casa. Como uma energia, um peso. Um estrondo soou por todos os cômodos. Era alguém batendo na porta da frente. Pelos gritos, parecia uma mãe preocupada, e furiosa. Theo continuou forçando a maçaneta, aproveitando dos gritos para abafar suas tentativas.
— Você não vai me deixar. — Vivian falou, mal se importando com Silvia do lado de fora. Os colegas já tinham entendido que não se tratava de uma pegadinha de Halloween, e foram para as extremidades da sala, o mais afastados possíveis de Vivian. Theo ainda não tinha uma visão da prima, e não pretendia ter. Era claramente algum tipo de episódio psicótico. Só podia ser.
— Vivian, calma. — pediu Emily. Mas isso só pareceu piorar as coisas.
— Até ela sabia! — Vivian gritou. — Ela!
— Ela não ia surtar igual você. — defendeu-se.
— Surtar? Surtar?!
— A gente precisa sair daqui — Yara parecia mais alerta agora. Theo começou a bater no vidro da porta dos fundos, sem se importar se Vivian ouviria ou não. Ele estava com medo dela. Todos estavam. Talvez ela até estivesse armada, não dava para saber.
E do outro lado do quintal, Mark continuava brincando com os cavalos, pacificamente. Ele escutou a mulher gritando e batendo na porta, mas não se importou o suficiente. Os adultos cuidariam daquilo. Devia ser só uma vizinha brava. Mas quando viu Theo gritando e batendo no vidro, ele entendeu que tinha algo de muito, muito errado.
— Abre a porta! — ele berrava.
Mark foi contagiado pelo medo do primo. Parecia que seu interior tremia. Seus olhos lacrimejaram num instante, esbugalhados de desespero e indecisão.
— Chega. Eu não quero mais conversar. — Vivian deixou a cabeça pender para frente, como se não tivesse mais forças no pescoço, e depois a reergueu. A mesma pessoa, os mesmos olhos furiosos. Mas algo diferente. — Eu não vou ficar sozinha.
◇◇◇
TRINTA DIAS ANTES
Era fácil se entendiar em Hayfell.
As únicas coisas que havia para fazer era andar pela praça principal, ir à única sorveteria boa da cidade e ir ao boliche. Não tinha nada mais. Nenhum ponto turístico, nenhuma história macabra sobre uma casa antiga, nenhum parque interessante. Por causa disso, o quarteto estava sempre tentando encontrar algo diferente para fazer.
Era dia primeiro de outubro, o início do mês assustador, e nada melhor do que ir até a floresta nas margens da cidade para explorar. Todas elas eram medrosas demais para mexer com tabuleiros espirituais ou para tentar invocar a Maria sangrenta no espelho do banheiro, então essa foi a alternativa mais assustadora que encontraram. E estavam indo de dia, com seus celulares e spray de pimenta. Pelo menos não era comum ter ursos por ali.
Elas caminharam pela trilha principal, por onde a maioria das pessoas ia para fazer caminhadas. Nem mesmo a floresta de Hayfell era assustadora. Nenhum histórico de morte, nem pessoas se perdendo, nem sequestros ou assassinatos. Talvez a pior coisa que aconteceu na história de Hayfell tenha sido sua inauguração.
— A gente trouxe alguma coisa pra fazer aqui? — perguntou Oliver, com uma camada brilhante de suor na testa.
— Como assim? Vir aqui é o que estamos fazendo. — respondeu Vivian.
— Um Uno, não sei… A gente só vai caminhar até alguma coisa rolar? — elas não tinham planejado muito bem. Emily parou para beber generosos goles de água da sua garrafa, tal como uma pessoa perdida no deserto. Se olhassem dali, ainda podiam ver as casas.
— Acho que esse é o plano. — Yara disse. Estava usando fones de ouvido, como sempre.
— Pelo menos vou fazer algum exercício… — Emily continuou a caminhar.
— Talvez você tivesse mais disposição se não fumasse. — Oliver provocou.
— Eu tô parando! — Emily rebateu. Estava mesmo há algum tempo sem cigarros, e estava feliz com o progresso. Oliver tinha sido sua maior motivação, visto que ela era tão atlética. Mas seus pulmões não se curaram tão rápido.
— Vamos, gente, eu quero pelo menos não ter visão da cidade — Vivian as incentivou. Seu plano era entrar fundo na floresta magra. Nem tinham tantas árvores. Era impossível elas se perderem.
— E depois? — Oliver incitou.
— Depois a gente escala uma árvore, sei lá. E voltamos pra casa. — sugeriu. Não era muito empolgante, mas era melhor do que nada.
— Será que vai ser entediante assim na Califórnia? — Emily disse, mais para Oliver, que estava do lado dela. Vivian e Yara não entenderam o comentário, então só seguiram em silêncio, mas se entre olharam. Talvez Emily fosse se mudar? — Pelo menos lá tem praia, né. — pensou alto. Oliver fingiu que não escutou, preocupada que as amigas fossem a questionar.
— Ei, olha só — falou, e apontou para um círculo que estava próximo a uma das árvores. Ela sentiu que tinha escapado. Só queria desviar a atenção para outra coisa, mas o pequeno círculo era mesmo interessante.
Feito de pequenos gravetos, folhas e cogumelos, não parecia exatamente natural. Devia ter um diâmetro de trinta centímetros apenas. Cabia uma pessoa dentro, se ficasse com os pés bem juntinhos. As quatro meninas se aproximaram delicadamente, analisando o que estavam vendo.
— Quê isso? — perguntou Emily.
— Não mexe, não — Yara falou depressa, vendo que a amiga ia levando a mão até o círculo.
— Por quê?
— Não sei. Só não mexe num círculo esquisito no meio da floresta. — respondeu. Yara era a mais mística de todas elas, e se interessava em bruxaria especialmente por causa da sua condição psiquiátrica. Gostava de se sentir em paz com a natureza, sentia que aquilo a ajudava. E aquilo se parecia com algo para não ser tocado.
— É Hayfell. — Vivian respondeu. — Não é como se fosse uma armadilha de sequestro, ou sei lá.
— Eu também não mexo com essas coisas. — Oliver cruzou os braços. — Não acredito nessas coisas, mas também não vou provocar, né.
— Que coisas?
— Sei lá. Pra mim parece coisa de Bruxa. Com todo respeito — falou, para Yara, quem revirou os olhos.
— Eu não sou uma bruxa. Eu só gosto de ler sobre. Mas tem todo um processo pra se considerar uma, por exemplo-
— Gente, é só um círculo de cogumelo. É natural, ninguém colocou isso aqui. — Vivian a interrompeu.
— Você não sabe. — Oliver rebateu.
— Tá bom, eu não vou encostar. — Emily se convenceu.
— Não acredito que Hayfell é tão chata que um círculo de gravetos tá assustando vocês.
— É assim que as pessoas morrem em filmes de terror — Oliver pontuou. — E eu não quero ser a pessoa burra que faz as pessoas gritarem no cinema pra parar de ser burra.
— Eu tô com ela. — Yara se afastou um passo. Emily olhou para Vivian, perdendo a batalha.
Audaz, ela deu um passo a frente, para mais perto do círculo. Yara riu.
— Se você morrer, não diz que a gente não te avisou.
— Eu vou voltar pra assombrar vocês com meu espírito atormentado. Vou virar a representação da culpa de vocês. — ameaçou, no mesmo tom brincalhão.
— Por outro lado, se nada acontecer, vai ser bem broxante. — Emily olhou para Yara, quem ergueu uma sobrancelha. Realmente.
— Agora eu fiquei num impasse. — Oliver tamborilou os dedos no bíceps. — Não sei se quero que alguma coisa aconteça ou que não aconteça.
— Foda-se, vou entrar no círculo do mal! — Vivian nem deu tempo para que suas amigas a impedissem. Ergueu o joelho e pisou para dentro do pequeno círculo.
Imediatamente, sentiu vertigem. Uma inércia estranha atingiu o seu corpo, como a sensação que se tem quando um elevador se move muito rápido numa direção. Não acreditou que teve um efeito placebo tão instantâneo assim. Estava sendo dramática.
Isso foi até ela reabrir os olhos, e perceber que estava sozinha na floresta. Não havia onde se esconder e as meninas não poderiam ter saído correndo tão rápido assim.
— Gente?
Sua voz pareceu reverberar como se estivesse dentro de uma igreja. Ela piscou algumas vezes, começando a ficar ofegante, preocupada com sua sanidade. Aquilo estava mesmo acontecendo ou ela estava dentro de um sonho? Não sabia dizer, apesar de certamente sentir a estranheza de não estar na realidade.
— Você tem um desejo?
Uma voz ecoou de todos os lugares. O coração de Vivian parecia que iria explodir, ou pular para fora do seu peito. Ela se sentia estranha, uma sensação forte de despersonalização, como se de repente estivesse assistindo a própria vida por detrás dos seus olhos, uma televisão imersiva. E, por mais que estivesse com medo, também tinha uma curiosa necessidade de responder à pergunta com toda a honestidade possível.
— Sim. — balbuciou.
— Qual é o seu desejo?
A voz parecia andrógina. Vezes parecia feminina, vezes masculina. Vezes não parecia com nenhum dos dois. Era etérea, angelical. Não era alta, apesar de ecoar. Como um sussurro doce, que vinha junto com o vento.
— Saber os segredos da Oliver. — não acreditava que aquelas palavras saíam da sua boca. Ela não podia controlá-las. Era como se estivessem vazando para fora. — O que tem sobre a Califórnia?
— Este é mesmo seu desejo? Só poderá escolher um.
Vivian olhou para os lados, travada na mesma posição e no mesmo lugar, mexendo apenas os olhos. Ela notou como Oliver evitou a pergunta. E Emily sabia de alguma coisa. A sensação ardente de ciúmes queimou sua caixa torácica e quase a deixou sem ar.
Ela já estava estranha há dias. Vivian podia sentir que ela estava escondendo alguma coisa. Será que ela se mudaria? E deixaria sua melhor amiga de anos ali, sozinha, para apodrecer em Hayfell? Não.
— Quero que a Oliver fique ao meu lado.
— Para sempre?
— Para sempre. — concordou, sem pensar.
— Todo desejo tem um preço.
— Qualquer coisa. — Não! Ela não queria dizer aquilo!
— Quantos anos você tem?
— Terei dezoito em vinte e nove dias.
— Dezoito almas extras.
— Dezoito…? Terei… que matar pessoas? — a ideia não parecia tão horrível quanto deveria.
— Oliver… Por dezoito almas.
— Não existe outro jeito?
— Sim… Ou não.
A palavra entalou na sua garganta. Imagens e mais imagens dela sozinha nesta cidade desgraçada surgiram diante de seus olhos. Oliver fazendo outros amigos… Mas que problema teria nisso? Elas ainda poderiam se ver, elas ainda poderiam…
Não. Oliver a abandonaria. Era isso que estava fazendo. Por isso não quis dizer nada. Melhores amigas, desde a infância… Tudo acabado. As promessas que fizeram… Por que ela estava fazendo aquilo?
Dezoito pessoas não parecia muito.
— Sim.
E quando piscou, estava de volta, cercada de suas três amigas. Oliver estava ali, e tudo que ela precisava era de dezoito almas… extras.
— Vivian?! Porra, graças a Deus! — Oliver a sacudiu. Só então percebeu que estava no chão. Havia sangue saindo do seu nariz.
— Que merda, que merda… — Yara andava de um lado para o outro, e Emily jogava água no rosto de Vivian.
Vivian não se sentia mais ela mesma. Como pôde cair tão fácil numa armadilha como aquela? Sem dúvida, o que tinha acontecido era real. Ela sentia que era. Podia sentir nos seus ossos. Mas Oliver estava ali.
— Eu tô bem — não, não estava.
— Você acabou de ter uma convulsão, a gente tem que te levar prum hospital!
— Eu disse que tô bem! Não quero preocupar meus pais.
— Vivian…
— Isso foi coincidência ou esse círculo é realmente possuído? — Emily perguntou. Enquanto digitava algo no celular freneticamente, em desespero, deixou o celular cair. Ele caiu de suas mãos e colidiu direto na quina de uma pedra, deixando a tela completamente rachada.
— Merda! — grunhiu, ainda assustada.
— Quero ir pra casa. — Vivian resmungou, se levantando. Ela não queria descobrir o que aconteceria se não entregasse as dezoito almas. Tinha que pensar, tinha que…
— Tá bom, então vamos — Oliver a abraçou de lado, apoiando seu corpo. — Chega de floresta.
— Isso não é nada bom. — Yara disse.
— Foda-se, não vamos pensar nisso agora. Só vamos sair daqui. — ela já caminhava na direção da cidade, preocupada. Yara e Emily foram logo atrás, em silêncio, mas levemente apressadas. A cada passo, Vivian se sentia menos ela mesma. — Pelo menos eu tenho você — sussurrou.
— É claro — Oliver não entendeu muito bem, mas queria manter Vivian falando. — E nunca vai ficar sem mim.
◇◇◇
AGORA
As janelas da casa de Vivian emanam uma iluminação laranja.
Todas as portas e janelas fechadas, os celulares desaparecidos.
Gritos, femininos, masculinos, todos tentando sair por algum lugar.
Os adultos induzidos ao sono em seus quartos.
Vinte almas. Era mais que o suficiente.
A fumaça preta e quente interrompe a passagem do ar, asfixia e inibe.
Oliver não consegue puxar nada pelo nariz entupido, e sua garganta queima.
Emily tenta quebrar uma janela.
Yara sabia que isso iria acontecer.
O fogo engole as cortinas, os tapetes e a madeira como uma energia extra para continuar se alastrando.
Ninguém sabe exatamente como ele começou. E não sabem quando ele irá terminar.
Os colegas, desesperados, arranham as paredes, a própria pele, tentando puxar qualquer oxigênio que tenha sobrado.
O relógio já depois da meia noite parecia martelar, derretendo aos poucos. Vivian quase ficou sem tempo.
Silvia tenta arrombar a porta.
Mark observa a casa em chamas, quase viva, do lado de fora. Imóvel, observando a chaminé expelir as quantidades exorbitantes de fumaça densa.
Theo está batendo, berrando por ajuda.
E pelos olhos dos cavalos, as chamas laranjas refletem, parecendo gritar.
◇◇◇
Oliver
Vivian
Emily
Yara
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