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O que resta de um coração partido e uma mente fraturada [+16]

Contagem de palavras: 1950


Meu nome é Samuela Andrade e esta é minha carta de confissão.

Não me foi muito bem informado sobre como eu deveria escrever isto, ou quais informações eu deveria colocar em uma carta de confissão além de, é claro, minha confissão. Por esse motivo, deixarei meu coração falar - o que, em boa parte das vezes, não costuma ser uma boa ideia.

Tenho dezoito anos e estou no último ano do ensino médio. Eu repeti o sétimo ano e nunca fui uma aluna incrível. Até o Ensino Fundamental I, eu tirava notas muito boas, especialmente em matemática, e daí em diante foi só ladeira abaixo.

Muita gente pode dizer que não há justificativa para o que eu fiz, mas, honestamente, não há justificativa para a maioria das coisas que a maioria das pessoas fazem, até se forem boas coisas. Não há um motivo para fazer caridade, é só "porque sim". Então não há uma razão lógica para o que eu fiz.

Também posso começar a dizer que penso que nenhuma atitude é cometida pelo uso da lógica apenas. Ações são coisas inerentemente emotivas, e a lógica fica reservada para o mundo dos pensamentos, mas isso é só o que eu acho e eu não sou nenhuma filósofa renomada.

De qualquer maneira, eu posso listar algumas coisas que me motivaram, talvez isso seja interessante.

Desde que me entendo por gente, sempre fui borbulhante. Tinha emoções fortes demais para o meu corpinho pequeno de criança, e depois que assisti Peter Pan, comecei a dizer que eu era uma fada. No filme eles explicam que fadas são tão pequenas que só podem sentir uma emoção de cada vez, e por isso são tão impulsivas e por isso a Tinker Bell tentou matar a Wendy.

Seria fofo uma garotinha se chamar de fada se ela tivesse até sete anos de idade, depois disso é só estranho, pelo menos para os coleguinhas de classe. Eu tinha onze. E eu era uma fada, eu tinha certeza disso!

Uma vez fui com um par de asas que eram vestidos como se fossem uma mochila, e fui motivo de piada pelo resto dos meus dias. Até hoje alguns se lembram de mim como a fadinha. E ser chamado de fadinha não parece nada insultante a não ser que você seja um homem com masculinidade frágil ou que uma criança do fundamental catarrenta tenha dito isso.

Era sempre o tom de voz, o jeito como diziam, com aquelas expressões de nojo e risadas de deboche. Infelizmente eu não aprendi tão rápido que estavam rindo de mim e não comigo.

E eu odiava todos eles. Menos a Miriam. Eu amava a Miriam. Ela era minha única amiga. Minha melhor amiga.

Brincávamos de fadas juntas. Fazíamos tudo juntas. Podíamos ser nós mesmas uma com a outra e ríamos o tempo todo. Ela tinha um cabelão cheio e cacheado e os olhos tão gentis que podiam derreter qualquer um. E eu era branquela de cabelo arrepiado com os dentes tortos. A Miriam era linda, era como olhar para Deus.

E como ela era linda e inteligente e carismática, eu não era a única amiga dela. Ela era amiga de todo mundo. Não demorou muito até que não tivesse mais tempo para mim, e tudo bem. Ela não era minha propriedade.

Por causa da sua popularidade, eu acabei parando de sofrer tanto bullying e hoje em dia quase ninguém mexe comigo, mas isso eu também devo aos meus problemas de raiva.

Ainda me lembro do primeiro dia em que aconteceu, na minha primeira vez no sétimo ano. Eu quebrei o espelho da escola com a mente. Sim, com a mente. Eu encarei ele com tanta força que ele se rachou em milhares de pedacinhos, e eu fiquei um bom tempo encarando o que sobrou do meu reflexo, muito assustada. Pensei que tinha alucinado. Mas sabia que não tinha alucinado porque minha mão não estava cortada.

E essa não foi a parte mais assustadora. A parte mais assustadora foi quando eu percebi que ninguém nunca iria acreditar em mim. Então eu peguei um dos cacos do espelho e cortei as juntas da minha mão esquerda, porque sou canhota, pra fingir que eu quebrei o espelho com um soco. Só que como eu estava cortando minha mão esquerda com minha mão não dominante, eu acabei fazendo força demais e abrindo uma ferida gigantesca nas costas da minha mão.

Se o barulho do espelho quebrando já não tinha sido o suficiente, o meu grito com certeza foi. Um monte de alunos saíram da sala para ir ver o que estava acontecendo, e me encontraram ali, debruçada em cima da minha mão sangrando, o líquido vermelho escorrendo pelo meu braço e caindo nos meus tênis, e o espelho estilhaçado.

Fui levada pra coordenação, e então me passaram pra diretora. Eu tentei ir com a mentira de que tinha escorregado, e obviamente não colou. Então só confessei, como estou fazendo agora. Contei que tinha quebrado o espelho de propósito (mas não mencionei o lance da mente), porque estava com raiva. Quando me perguntaram por quê eu estava com raiva, respondi que não sabia, e eu não sabia, mesmo. Eu só sentia tanta, tanta raiva o tempo todo.

Depois desse evento, desenvolvi um vício em automutilação que pensei ser insuperável. Era tão bom sentir minha carne se rasgando, era tão bom a sensação de estar sentindo algo tão forte que me fazia gritar. Nem mesmo masturbação me dava o mesmo prazer. Eu gemia de dor e de prazer enquanto passava minhas lâminas na pele, pelos meus braços, meus pulsos, minhas coxas, minha barriga, onde eu sentisse que tinha uma coceira. Essa coceira, essa vontade de rasgar e dilacerar. O que tinha de tão mal nisso? Não estava fazendo mal a ninguém além de mim mesma.

Meus pais não quiseram me levar num psicólogo porque era muito caro e eles também nunca ligaram muito pra mim. Se divorciaram há muito tempo e eu sempre fui só algo que vinha semana sim e semana não, de uma casa para outra, um fantasma feio com olheiras fundas vagando por aí.

Então eu cometi o grande erro de contar pra Miriam. Contei pra ela que quebrei o espelho com a mente, e ela não acreditou em mim. A minha Miriam, que brincava de fada comigo, que tinha feito pulseira da amizade comigo, a menina mais compreensiva do mundo, a linda Miriam de olhos doces não tinha acreditado em mim. Meu coração partiu em mais caquinhos do que o espelho.

Me senti maluca, talvez eu estivesse ficando, mesmo! Mas aí aconteceu de novo, e de novo, e de novo, ao longo dos anos. Eu mexia objetos com a mente, amassava latinhas de alumínio, quebrava coisas, tudo o que eu quisesse. Eu não sei como faço. Não sei como acontece e não sei como é possível, mas acontece. Eu juro.

A vadia da Miriam espalhou para a escola toda. Ela disse que não foi a intenção dela, mas o inferno está cheio de boas intenções. Agora a fada também achava que tinha super poderes. Nem os professores me levavam a sério.

A psicóloga da escola tentou me ajudar, e eu disse que não tinha salvação. Eu estava sozinha, sem Miriam e sem sanidade. Eu tentei mostrar pra ela os meus poderes, como eles eram reais, mas é claro que não funcionou na hora e só piorou a situação.

Eu me afundei em livros, eu lia o tempo todo, e não falava com ninguém. Logo parou de ser divertido mexer comigo, então todo mundo só fingia que eu não estava lá. Um fantasma feio de olheiras fundas vagando por aí. Passava por pouco nas matérias, não abria a boca.

Ano passado eu tentei me matar e a Miriam foi me visitar no hospital. Disse que sentia muito. E que sentia minha falta. E que ia compensar pelo tempo perdido. Eu não tinha mais forças pra lutar. Não tinha forças para negar a ajuda dela ou suas desculpas. Só respirei, sentindo meu corpo inteiro doer, mas respirei, e Miriam considerou isso como uma concordância.

Ela me surpreendeu. Voltou a andar só comigo, dizia que não gostava do pessoal daquela escola. Disse que acreditava em mim, mas eu sabia que era só por pena. Descobri também que na verdade eram os amigos dela que tinham descartado ela, e como ela provavelmente sentiu alguma culpa quando tentei me matar, agora era a hora perfeita para reatar a amizade. Mas eu estava no fundo do poço. Então eu aceitaria qualquer coisa, mesmo que fosse a última opção de alguém. Poderia viver de migalhas.

A Miriam conseguiu que eu fosse a um psicólogo. Ela acompanhou minha melhora lenta. Me deu presentes, me acompanhou até em casa todos os dias e me ajudou a estudar. E eu mostrei meus poderes pra ela. Ela ficou horrorizada, e tudo bem. Acho que mesmo depois de ver, ela continuou sem acreditar. Não falava naquilo, não mencionava o assunto.

Viajamos juntas em Julho para a praia e foi bom sentir o sol na minha pele, mas não tão bom assim sentir os olhos das pessoas nas minhas cicatrizes. E nem eram discretas. Era cicatrizes em alto relevo, deformadas e enrugadas, mais escuras que minha pele e chamavam a atenção.

Eu e Miriam transamos. Ela elogiou o meu corpo e eu beijei ela e quando vi já tínhamos transado. Eu transei com a Miriam, a garota dos olhos não mais tão doces assim.

Quando as aulas voltaram, há dois meses, mais uma vez um assunto íntimo vazou. Todo mundo sabia que eu e a Miriam tínhamos transado, e eu sabia que não tinha sido eu, então só sobrava uma pessoa. Mas tudo bem. Estava tudo bem. A Miriam era tudo o que eu tinha e eu aceitaria migalhas.

Quando pensei que tudo melhorava, ela se foi de novo. Foi tão fácil para Miriam sumir da minha vida que fiquei pensando se tudo o que passamos tinha realmente acontecido. Me perguntei porquê ela estava fazendo aquilo, queria entender o que se passava na cabeça dela. Talvez o problema realmente fosse eu. Todas as evidências apontavam para mim como sendo a pessoa problemática. Talvez eu fosse a antagonista da minha própria história.

E aí chegamos no dia de ontem. Eu perdi meu caderno de desenhos. Eles tomaram de mim. Eles atearam fogo no meu caderno de desenhos e me chamaram de aproveitadora. Eu perguntei de onde eles tiraram isso e todos os olhares foram para Miriam. Os pontos se ligaram.

Minha arte queimava no chão. Não conseguia sentir nada. Nada além de raiva, raiva e raiva. Meu coração batia tão forte que eu pensei que fosse infartar. A coceira se intensificava, mais, e mais, e mais, e num piscar de olhos... Todos eles. Todos caídos na minha frente.

Duros, imóveis, ainda quentes. Com os olhos saltados para fora das crateras, os crânios rachados expelindo um líquido estranho. Sangue saindo dos ouvidos. Estávamos numa pracinha perto da escola. Então eu fiz o que tinha aprendido desde cedo a fazer.

Peguei uma pedra grande o suficiente e esmaguei os crânios deles para dentro até que ficassem irreconhecíveis. Amassei o rosto de Miriam tanto que quase atravessei um buraco na sua cabeça. Eu batia e batia e batia sem parar, meus músculos ardiam com a repetição do mesmo movimento, meus dentes rangiam e meu sangue fervia, mas meus olhos não expressavam nada.

Fiquei ali até escutar gritos, e aí sirenes, e aí me arrastarem para longe dos corpos; pega em flagrante.

Causa da morte: traumatismo craniano, é claro.

Porque ser assassina era melhor do que ser maluca. E ninguém iria acreditar em mim se eu dissesse que os matei com a minha mente.


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